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A vacina é um EPI?

Recentemente fui provocado por um grande amigo sobre a seguinte questão: o trabalhador de um hospital, por exemplo, é obrigado a se vacinar? Questão instigante e que ganha ainda mais interesse em tempos de pandemia. Nos próximos parágrafos, minhas impressões sobre o tema.

A legislação trabalhista contempla, através da NR-9, a proteção à saúde dos trabalhadores em relação aos riscos ambientais de trabalho, atribuindo às empresas a obrigatoriedade de prover as condições adequadas à sua execução. Entre essas condições, inclui-se, por exemplo, o fornecimento – quando necessário – de EPIs.

Primeira reflexão: a vacina pode ser considerada como um EPI? Conceitualmente, me parece que sim. Conforme o item 6.1 da vigente NR-6, “considera-se Equipamento de Proteção Individual – EPI, todo dispositivo ou produto, de uso individual utilizado pelo trabalhador, destinado à proteção de riscos suscetíveis de ameaçar a segurança e a saúde no trabalho“. Num ambiente hospitalar, por exemplo, o imunizante sabidamente protege o profissional da saúde (e também terceiros!) de riscos suscetíveis e inerentes às suas atividades.

Por outro lado, a mesma NR-6 estabelece em seu item 6.3, que “o EPI, de fabricação nacional ou importado, só poderá ser posto à venda ou utilizado com a indicação do Certificado de Aprovação – CA, expedido pelo órgão nacional competente em matéria de segurança e saúde no trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego”. Nesse ponto, é importante lembrar que a competência para liberação do uso de uma vacina no Brasil não é do órgão nacional competente em matéria de segurança e saúde no trabalho, mas sim da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Cabe a ANVISA (autarquia vinculada ao Ministério da Saúde) nos termos da Lei 9.782/1999 autorizar a fabricação, distribuição e importação de vacinas (art. 7, inciso VII) e também proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de imunizantes, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde.

Quando a ANVISA aprova uma vacina deduz-se sob o ponto de vista técnico, entre outras coisas, que os benefícios do imunizante são maiores do que possíveis malefícios. Uma vez aprovada pela ANVISA, uma vacina terá seu uso permitido no Brasil e poderá, inclusive, integrar o Calendário Nacional de Imunização (PNI), atualmente definido pela Portaria MS n. 1.533/2016.

Dessa forma, enquanto um EPI só pode ser assim chamado no Brasil quando tiver o respectivo C.A., uma vacina já pode ser usada/indicada quando for aprovada pela ANVISA. Isso, ao meu ver, distingue um imunizante de um EPI propriamente dito nos termos da NR-6.

Indo além, caso o(a) fabricante da vacina faça questão de ter um C.A. para uso do imunizante como EPI propriamente dito nos termos da NR-6 (intenção que acho improvável), vislumbro que isso também seja possível. Isto porque a Portaria n. 11.347/2020 estabelece que para que um “creme de proteção” (produto a ser usado pelo trabalhador, assim como seria uma vacina) possa ter o seu respectivo C.A., o(a) fabricante deverá apresentar à Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT o relatório de ensaio laboratorial deste produto com o respectivo número de registro na ANVISA. Apenas isso será suficiente para instruir o processo e obter o C.A. deste produto. Nada mais.

Se para um creme de proteção é assim, de forma análoga, ouso concluir que para uma vacina seja a mesma coisa, ou seja, caso o(a) fabricante apresente à SIT o relatório de ensaio laboratorial deste produto com o respectivo número de registro na ANVISA, isso será suficiente para instruir e possivelmente obter o C.A. deste imunizante como um EPI propriamente dito nos termos da NR-6. O racional desta minha conclusão é bem simples: se o imunizante foi aprovado pela ANVISA para uso na população em geral, não há porque negar-lhe o C.A. para uso como EPI [caso o(a) fabricante solicite o Certificado de Aprovação], especialmente considerando que a Portaria n. 11.347/2020 já faz esse tratamento ao analisar o creme de proteção.

Alguns dirão: “Marcos, você acha mesmo razoável comparar ‘creme de proteção’ com ‘vacina’”? Sim. Não pelas propriedades desses produtos, mas pelo conceito de EPI trazido pela NR-6:”produto, de uso individual utilizado pelo trabalhador, destinado à proteção de riscos suscetíveis de ameaçar a segurança e a saúde no trabalho“. Esse conceito é aplicável de forma equivalente tanto para o creme de proteção, como para a vacina. E isso justifica a comparação que faço entre esses dois produtos.

Acrescento que o fato de não haver menção expressa das vacinas como um tipo de EPI na referida Portaria n. 11.347/202 não impede a tentativa do(a) fabricante tentar obter o C.A. deste produto já que a própria norma, além de mostrar especial atenção com este período pandêmico, estabelece que casos omissos também serão objetos de estudo e avaliação.

Segunda reflexão: ainda que não tenha C.A., uma vacina autorizada pela ANVISA pode ser considerada com o algo análogo ao EPI num ambiente hospitalar? Me parece que sim. Isto porque, assim como o EPI, o imunizante é usado individualmente e funciona como uma medida de controle que visa a proteção de um agente que não pôde ser plenamente neutralizado por medidas administrativas, proteção coletiva e/ou equipamentos de proteção individual. Tanto assim que a insalubridade por risco biológico, como regra, independe do uso de EPI e se dá por avaliação qualitativa, nos termos do Anexo 14 da NR-15.

Por outro lado, em alguma medida a vacina também se aproxima de um EPC. Sim, pois numa organização, quanto maior for o contingente de trabalhadores vacinados, menor será o índice de transmissão coletiva da respectiva moléstia.

Em termos de analogia, a vacina está mais para EPI ou EPC? Conforme exposto, há características tanto de um como de outro. É usada individualmente e garante proteção ao indivíduo: isso a aproxima de um EPI. Na medida em que protege a coletividade de contágios, isso a aproxima de um EPC.

Talvez, uma possibilidade interessante seja considerá-la como uma medida de controle com características híbridas entre o EPI e o EPC. Por esse prisma, em termos de prioridade, a vacinação ganharia ainda mais importância e deveria vir antes do EPI, nos termos do item 9.3.5.4 da vigente NR-9.

Terceira reflexão: a vacinação pode ser obrigatória num ambiente laboral? Mais uma vez, me parece que sim. Explico.

A NR-32 diz que “o empregador deve assegurar que os trabalhadores sejam informados das vantagens e dos efeitos colaterais, assim como dos riscos a que estarão expostos por falta ou recusa de vacinação, devendo, nestes casos, guardar documento comprobatório e mantê-lo disponível à inspeção do trabalho.” Esse trecho faz parecer que o trabalhador não pode ser obrigado a ser imunizado. Com todo respeito aos que assim interpretam, não vejo assim.

Se estou considerando a vacinação como análoga ao EPI, façamos o seguinte exercício: imaginemos um trabalhador que, após o fornecimento de um protetor auditivo pelo empregador, se recusa a fazer o uso deste EPI. Nesse caso, seria ilegal, negligente e até criminosa (art. 132 do Código Penal) a conduta de deixá-lo simplesmente assinar um termo de responsabilidade pelo não uso do respectivo protetor, e permitir que ele vá trabalhar em sua função de risco. Não é assim que funciona! Cabe ao empregador cumprir e fazer as normas de saúde e segurança do trabalho (art. 157 da CLT). A recusa de um EPI é um ato faltoso do empregado (art. 158 da CLT).

Considerando que a vacinação seja análoga ao EPI, me parece que ela pode e deve ser exigida, desde que haja fundamentos para isso. E há.

A mesma NR-32 estabelece (a meu ver, não apenas como um enfeite do texto), que o PCMSO deve contemplar o “programa de vacinação”. Diz ainda que “a todo trabalhador dos serviços de saúde deve ser fornecido, gratuitamente, programa de imunização ativa contra tétano, difteria, hepatite B e os estabelecidos no PCMSO.”

Em outras palavras, assim como alguns exames complementares são compulsórios pela via do PCMSO, me parece que o programa de vacinação pode e deve ser exigido obrigatoriamente também. Lembremos mais uma vez que é obrigação do empregador zelar pela saúde dos seus empregados (CLT, art. 157), jamais com viés discriminatório, mas sempre protetivo. Estou convencido de que é esse o caso.

Quarta reflexão: há amparo legal em obrigar alguém a se vacinar? Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo se não por força da lei, é preciso lembrar que nenhuma lei afirma que é proibido exigir a obrigatoriedade da vacinação recomendada pelo Ministério da Saúde e/ou cientificamente reconhecida como eficaz e protetiva. Ao contrário! Existem normas que atestam a obrigatoriedade de vacinas para casos específicos, como por exemplo, para trabalhadores de áreas portuárias, aeroportuárias, de terminais e passagens de fronteira; ou tripulantes ou pessoal dos meios de transporte que procedam de áreas endêmicas e de países com transmissão de febre amarela (Portaria MS 1.986/2001).

Para crianças e adolescentes que não completarem o calendário vacinal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê sanções administrativas aos pais e responsáveis. O parágrafo 1º do artigo 14 estabelece que é “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. A pena para os pais considerados negligentes pode variar do pagamento de uma multa até a perda da guarda da criança em casos extremos.

É verdade: não podemos comparar “pais” com “empregadores”. Os pais podem ser punidos pois parte-se do princípio de que a criança não tem o discernimento necessário para escolher ser vacinada ou não. Já os trabalhadores tem essa autonomia. Eles podem escolher não serem vacinados… assim como os hospitais podem ter a política (de forma pública, válida para todos, tecnicamente embasada, justificada na proteção e não na discriminação) de não contratar trabalhadores expostos a riscos biológicos que não estejam vacinados. É assim que funciona (ou pelo menos deveria funcionar): quando adultos escolhem, são responsáveis pelos ônus e bônus das escolhas que fazem.

Na mesma linha, o STF (Supremos Tribunal Federal) decidiu no dia 17/12/2020 que o Estado pode determinar aos cidadãos que se submetam, compulsoriamente, à vacinação contra a Covid-19. De acordo com a decisão, o Estado pode impor aos cidadãos que recusem a vacinação as medidas restritivas previstas em lei (multa, impedimento de frequentar determinados lugares, fazer matrícula em escola, entre outras).

O próprio presidente Bolsonaro (ele mesmo!) sancionou a Lei n. 13.979, de 06/02/2020, que em seu art.3, inciso III, alínea “d”, estabelece que, para o enfrentamento da COVID-19, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, a “determinação compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas”.

Quinta reflexão: pode não ser ilegal, mas é ético ao Médico do Trabalho determinar a vacinação compulsória através do PCMSO? De novo, creio que sim. Apenas para lembrar o que nos ensina o vigente Código de Ética Médica:

Artigo 14: É vedado ao médico praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação do País. (Meu comentário: a imposição da vacinação no PCMSO não é desnecessária e não está proibida pela legislação brasileira.)

Princípio Fundamental n. II: O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. (Meu comentário: a imposição da vacinação no PCMSO de um hospital me parece bem encaixada no alvo descrito.)

Alguns dirão: “Marcos, por outro lado, o art. 31 do mesmo Código de Ética Médica estabelece que é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. Perfeito! Essa autonomia será respeitada. Se o paciente/trabalhador não quiser se vacinar, ele não será vacinado e arcará com as consequências (inclusive legais) de sua escolha.

Por justiça, vale transcrever também o artigo imediatamente seguinte do Código de Ética Médica: “Art. 32. É vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.” Que cada médico faça sua reflexão.

Sexta reflexão: o trabalhador que se recusar a vacinação está inapto? O apto e o inapto são conclusões possíveis do ASO, nos termos da NR-7. O ASO só poderá chegar a uma conclusão após todas as etapas determinadas pelo PCMSO serem cumpridas, entre elas: exame clínico, complementares e, nesse caso, a vacinação que tenha sido imposta pelo respectivo programa. E uma vez imposta, o trabalhador não poderá se recusar a realizá-la, nos termos do item 1.4.2 da NR-1.

Caso mantenha a recusa, o ASO não poderá ser emitido pela falta de cumprimento de todas as etapas impostas pelo PCMSO. É como se um dos exames complementares ou até mesmo o exame clínico não tivesse sido realizado. Não se emite o ASO nessas condições, como se extrai do art. 6, inciso II, da Resolução CFM n. 2.183/2018.

Assim, na prática, o trabalhador que recusar a vacinação imposta pelo PCMSO não será considerado nem apto, nem inapto. Ele não terá seu ASO emitido pela falta de conclusão deste documento e, portanto, não poderá exercer o seu trabalho.

É claro que, para a implantação dessa medida, a gestão da empresa e o departamento jurídico precisam estar alinhados com o serviço de Medicina do Trabalho e, sobretudo, convencidos de que essa é a melhor política a ser adotada. Caso não haja esse alinhamento, é melhor que tudo isso seja repensado.

Sétima reflexão: se o trabalhador que se recusar a vacinação for PJ (pessoa jurídica) e não estiver submetido a CLT/NRs? Nesse caso, a vacinação atualizada e comprovada periodicamente pode ser exigida no contrato, com a respectiva responsabilização do prestador de serviço em caso de descumprimento. Essa cláusula deve ser colocada como condicional para a execução do contrato.

Oitava reflexão: se o trabalhador não estiver vacinado e estiver trabalhando, ele deve ser considerado inapto pelo risco de contaminar alguém? Não. Com vacina ou sem vacina, o risco de contaminar um terceiro não é, por si só, motivo de inaptidão. É o que ocorre, por exemplo, com trabalhadores HIV positivos assintomáticos (Portaria MTb n. 1.246/2010).

Nona reflexão: se o trabalhador de um hospital não estiver vacinado e contaminar alguém com a doença que seria evitada pelo respectivo imunizante, a culpa será do hospital? Cada caso será um caso. Por isso é que, via de regra, essas situações necessitam de avaliações periciais particularizadas quando são judicializadas.

Décima reflexão: se o trabalhador sofrer reação alérgica grave com a vacina, de quem é a responsabilidade? A prescrição da vacina – assim como a de qualquer medicação – deve ser precedida de exame médico. Após a anamnese e coleta do histórico do trabalhador (inclusive no que tange a reações alérgicas prévias), a vacinação poderá ou não ser indicada. Sendo indicada, é porque, na avaliação médica, os benefícios superaram os riscos e, mesmo diante de um grave e indesejável efeito colateral, haverá respaldo do médico prescritor, caso demandado administrativa ou judicialmente (o que, de fato, pode ocorrer). Se pensarmos bem, cada prescrição de medicamentos que um médico faz segue exatamente o mesmo raciocínio.

Agora imaginem um trabalhador cuja função necessite do uso de luvas. Ele relata grave reação alérgica prévia ao látex deste EPI. Nesse caso, ele não deve assumir essa função sem a devida (re)adaptação que, não sendo possível, contraindica (por critérios protetivos e não discriminatórios) o exercício de sua função nos termos do PPRA/PCMSO da empresa.

Raciocínio idêntico se faz a um trabalhador da “linha de frente” de um hospital cujo risco alérgico à vacina, por exemplo, seja maior que seus benefícios. Ele também não deve assumir essa função sem a devida (re)adaptação que, não sendo possível, contraindica (por critérios protetivos e não discriminatórios) o exercício de sua função nos termos do PPRA/PCMSO do hospital (aqui considerando que o programa de vacinação foi exigido pelo PCMSO).

Obs.: por amor ao debate, vale lembrar que nos casos de imunização compulsória proposta pelo Estado (sem avaliação médica prévia e particularizada de cada paciente/cidadão), me parece ser também do Estado a responsabilidade de responder, em qualquer instância, por qualquer reação alérgica e/ou outro efeito colateral grave provocado pela vacina. Acrescento que, sendo um imunizante liberado pela ANVISA com base em estudos técnicos que atestaram que seus benefícios eram maiores do que possíveis malefícios, é de fácil percepção que o Estado gozará de elementos robustos em sua defesa, sobretudo se os números da contaminação pela respectiva doença já tiverem sido reduzidos de forma importante em nível coletivo e em virtude deste programa vacinal.

Por agora, é isso que penso. Sigamos refletindo. À vontade para os contraditórios.

Autor: Marcos Henrique Mendanha (Instagram: @professormendanha): Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito do Trabalho. Autor do livro “Limbo Previdenciário Trabalhista – Causas, Consequências e Soluções à Luz da Jurisprudência Comentada” (Editora JH Mizuno), e “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Coautor do livro “Desvendando o Burn-Out – Uma Análise Multidisciplinar da Síndrome do Esgotamento Profissional” (Editora LTr). Diretor e Professor da Faculdade CENBRAP. Mantenedor dos sites SaudeOcupacional.org e MedTV. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas, e do Congresso Brasileiro de Psiquiatria Ocupacional. Diretor Técnico da ASMETRO – Assessoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda (Goiânia/GO). Colunista da Revista PROTEÇÃO.

FONTE: https://www.saudeocupacional.org/2021/01/a-vacina-e-um-epi.html
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